A História de um Cravo Vermelho

Texto produzido para uma brochura sobre as comemorações do 25 de Abril de 2010 organizadas pela Câmara Municipal de Barcelos.

A HISTÓRIA DE UM CRAVO VERMELHO
E depois do adeus tudo começou. Faltavam cinco minutos para as vinte e três horas. O ritmo lento e sincopado da vila morena alentejana soou meia hora depois. Os dados estavam lançados. O curso da história fora gizado, sem retorno, por jovens mãos militares cansadas de uma guerra fratricida sem solução e sem sentido. A ideia delirante do velho império caíra subitamente com o regime decrépito que a sustentava. Tocou o telefone. O senhor presidente do Minho a Timor ficou a saber que fora deposto. A revolução estava na rua; o povo estava na rua; os militares estavam na rua; e a liberdade estava na rua. Naquele dia de Abril os portugueses sonharam como há muito não se via. A noite opaca de quase meio século de invernia deu lugar a um sol brilhante, intenso, transparente e solidário, portador da promessa de nascer, dia após dia, de modo igual para todos, sem favores, sem discriminações, sem excepção. Naquela manhã do dia vinte e cinco de Abril de setenta e quatro, por volta das doze badaladas, o cravo vermelho acordou sobressaltado no interior da cesta de vime que o havia transportado para o centro da cidade na companhia de muitas outras flores, numa amálgama de perfumes que parecia anunciar um novo mundo, uma esperança renovada. Carregava no pé, ainda, o odor da terra de onde fora arrancado abruptamente de madrugada. A praça achava-se como nunca a imaginara. Uma mole humana cantava, a uma só voz, palavras de ordem incompreensíveis e frases soltas de toda a espécie, num frenesi que o obrigou a recolher-se parcialmente à cesta de vime, de forma contida, receoso daquele espectáculo que o surpreendera e que o despertara da modorra do sono de um dos derradeiros dias da sua vida. O cano de uma espingarda surgiu empunhado nas mãos de um militar e isso não foi do seu agrado. Olhou em redor e reparou em muitas outras espingardas e em muitos outros soldados que se distribuíam um pouco por todo o lado. Temeu o pior. Imaginou o que poderia suceder naquelas circunstâncias, em que observava, de um dos lados da praça, um ror de gente unido num corpo só e, do outro lado, uma série de armas carregadas de balas supostamente indiferentes ao sentido do disparo e ao sentido da missão trágica que lhes poderia ser encomendada. De repente, o som da coronha de um espingarda a chocar contra a calçada soou mesmo junto de si, ao pé da cesta de vime onde se encontrava retraído e expectante. Desejou fechar os olhos, mas não conseguiu. Nesse instante, um menino descalço, com roupa esfarrapada vestida e de caracóis loiros encantadores, aproximou-se da arma e do soldado. O cravo vermelho ficou aterrado. Quis lançar um grito aflito, alertando o menino para os perigos que corria, mas nem um leve murmúrio se ouviu naquele momento de tragédia anunciada. Entretanto, o menino dos caracóis loiros parou junto à cesta de vime e segurou no cravo vermelho com carinho – erguendo-o suavemente até ao nível das faces rosadas –, e inalou profunda e lentamente, com manifesto prazer, o perfume exalado pela flor. O cravo vermelho ficou embevecido e sem saber o que dizer. Depois, o menino caminhou em direcção à espingarda apontada aos céus, parou junto dela, esticou-se um pouco e colocou-o dentro do cano da arma. Apesar do compreensível desconforto que a flor rubra eventualmente sofreria por se encontrar num local tão perigoso, nunca evidenciou – nem por um brevíssimo instante –, uma sombra, sequer, de medo. Olhou ternamente para o menino descalço, com roupa esfarrapada vestida e de caracóis loiros encantadores, e emocionou-se com o gesto da criança, onde viu reflectido o futuro do seu país – o futuro de Portugal.


A História de um Cravo Vermelho
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