Não é por Acaso

Texto produzido para a campanha O Comércio está no Centro, da Associação Comercial de Braga, sobre a afirmação de Braga como a Capital do Comércio.

NÃO É POR ACASO
Naquele dia que nunca aconteceu, algumas cidades reuniram-se numa pequena aldeia, em território neutro. Decidia-se a constituição da Associação das Cidades Capitais de Características Distintivas. A mesa da assembleia era presidida por Lisboa e secretariada pelo Porto. A Invicta, um pouco contrariada, recebeu a tarefa de redigir a acta da reunião e não conseguiu evitar o pensamento recorrente de que enquanto Lisboa se diverte, o Porto trabalha. Nem todas as cidades foram convidadas: algumas delas por não aspirarem a ser capitais de rigorosamente nada, embora pudessem reivindicar essa condição; outras porque não reuniam as circunstâncias consideradas necessárias para obterem um título tão proeminente; e as restantes, porque não.
 
A pequena sala onde se achavam estava equipada com duas dúzias de cadeiras, dispostas em filas de quatro unidades, onde os membros da futura associação se acomodavam. Na primeira fila sentava-se Coimbra, capital da saúde, com uma postura correcta, ergonómica, numa atitude clara de evidenciar as suas qualidades distintivas e afastar a eventual concorrência. Aveiro, capital do leite, estava à sua direita e exibia, ainda, o bigode lácteo que fazia questão de manter desde o último anúncio publicitário. Ninguém sabia se teria sido a proximidade geográfica que colocou, lado a lado, Coimbra e Aveiro. Obra do acaso, talvez. Capricho da sorte, quem sabe! Próximas no mapa e nos assentos e tão afastadas em matérias de outra natureza. Uma fila atrás, a Golegã, capital do cavalo, e a Lourinhã, capital dos dinossauros, sentadas ombro a ombro e ambas com ambições de protagonismo circunscritas ao reino animal, partilhavam a fila com São João da Madeira, capital do calçado, que fazia jus aos seus créditos na exposição exuberante, quase exibicionista, de um belo par de sapatos em pele genuína, imaculadamente engraxados, cintilantes, reflectindo em todas as direcções a luz do candeeiro do tecto, ao ritmo da batida sincopada e nervosa do pé esquerdo no soalho de madeira. Albufeira, capital do turismo, mostrava-se na terceira fila, descontraída, vestida sem cerimónia e com a pele bronzeada pela generosidade do sol algarvio. Olhão, capital da Ria Formosa, quedava-se a seu lado, atenta ao mais pequeno detalhe, aos gestos das outras cidades, às frases incompletas que captava das conversas soltas e desprendidas que quebravam aleatoriamente os silêncios daquele momento. Na quarta fila aguardavam pacientemente o início da reunião as cidades de Santarém, capital do gótico, Vila Viçosa, capital do mármore, Vinhais, capital do fumeiro e Paços de Ferreira, capital do móvel, imóveis, de olhares centrados nas cidades alfacinha e tripeira da mesa da assembleia. Na derradeira fila de cadeiras, Pinhão, Régua, Valença do Douro e Vila Nova de Gaia, todas candidatas a capital do Vinho do Porto, discutiam calorosamente sobre a justeza da sua pretensão individual e o ridículo da presunção das restantes, esgrimindo argumentos em benefício da razão que cada uma dessas cidades reclamava para si própria. Braga, a capital do comércio, foi a última a chegar, mas também a mais pontual. A pontualidade consiste em estar no local combinado à hora marcada e não antes ou depois.
 
Lisboa bateu sete vigorosas e autoritárias palmadas na mesa, uma por cada colina da cidade, e deu início aos trabalhos. Coimbra pediu a palavra. Já não queria ser conhecida como a cidade dos estudantes, nem sequer dos doutores. Nem ouvir falar de fado. O Hilário disse um dia, é certo, mas agora quem diz é a Mariza e o Camané. A Saúde, afirmava Coimbra, é o seu posicionamento actual e um negócio com futuro garantido. Seria, definitivamente, a Capital da Saúde. Todas concordaram. Depois, cada cidade apresentou as suas razões para receber o título desejado de capital de qualquer coisa. A reunião decorreu cordialmente e sem incidentes assinaláveis. Só não foi possível obter entendimento, lamentavelmente, em relação à capital do Vinho do Porto. Lisboa, na sua qualidade de presidente da mesa da assembleia, fez notar que só podia haver uma capital para o célebre vinho generoso. As candidatas quiseram ir a votos. A assembleia que decidisse. A assembleia recusou. Permaneceu o impasse. Solicitaram a intervenção de Braga na qualidade de urbe mais antiga de Portugal, anterior à própria nacionalidade lusa. A cidade dos arcebispos, na sua sabedoria bimilenar, fundada pelo império romano sobretudo por razões de estratégia comercial, estava habituada a negociar e a encontrar relações de ganho mútuo. A sua opinião e sapiência foram reclamadas pelas companheiras de projecto. Trataram-na, até, docilmente e com alguma deferência, por Augusta.

Braga não ficou indiferente ao clamor da plateia. Envaideceu-se ligeiramente e viu-se surpreendida por um leve enrubescimento. Ergueu-se e tomou a palavra. Disse que a constituição da associação não deveria ser posta em causa, como também não seria sensato, nem elegante, excluir da futura colectividade os quatro burgos conflituantes, apenas por uma falta de entendimento circunstancial. Acrescentou que, noutro momento, mais propício ao debate, e no seio da organização, se decidiria como resolver a questão com propriedade e justiça.

O aceno afirmativo dos presentes encorajou-a a continuar o discurso. E continuou. Sugeriu que, naquela conjuntura, os membros em disputa pelo título de capital do Vinho do Porto fossem admitidos na associação com o estatuto de "candidatos a capital". Uma ideia simples, mas lógica, eficaz e ponderada. Além disso, prosseguiu Braga, não lhe repugnava que o Vinho do Porto tivesse mais do que uma capital. Casos idênticos não faltam em capitais de países por esse mundo fora: Nova Iorque e Washington, Rio de Janeiro e Brasília, Berlim e Bona, só para citar alguns.

Depois de um brevíssimo momento de silêncio reflexivo de todos os presentes, palmas penetrantes irromperam em uníssono pela sala. A proposta foi votada, aprovada e aclamada. Resolvido a tempo o contratempo, a sessão prosseguiu com normalidade até à assinatura do acto constitutivo da associação, que era afinal, o objectivo primordial da reunião.

E Braga pôde escrever mais um capítulo demonstrativo da sua aptidão inata para os negócios, criando soluções que concorrem para que todos fiquem a ganhar.

Não é por acaso que Braga é a Capital do Comércio.



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